A sabedoria, para os gregos, não nasce com Sócrates, nem Platão nem Aristóteles. Nem com Tales, Heráclito ou Parmênides. A sabedoria, que os gregos chamavam filosofia, pois a buscavam bem cientes de que ainda não a tinham encontrado, nascera, de acordo com os seus mitos, da cabeça rachada de Zeus.
Os mitos gregos são assim mesmo, meio bizarros. Mas por trás da bizarrice podem ocultar-se significados que nos interessam sobremaneira. Vejamos se é o caso.
O mito diz que Atena, deusa da sabedoria e deusa tutelar da cidade de Atenas, era filha de Zeus e de uma divindade menos conhecida chamada Métis. Esta Métis era filha de Oceano e Tétis.
Bem, Métis podia ser uma divindade menor, mas ela tinha a presidência de algo, assim como os demais deuses do panteão greco-romano. Métis era deusa daquilo que a palavra sugere para nós ainda hoje: da mente humana e suas artimanhas.
Agora sabemos mais uma coisa: que a sabedoria é filha da mente, da capacidade de pensar, de antecipar, de planejar e até de enganar que os homens têm. Até aí, tudo bem, faz sentido, não é exatamente uma descoberta. O que é curioso é que a sabedoria veio à existência da cabeça de Zeus, e não do ventre de Métis.
Isso ocorreu porque o deus dos raios, alertado por uma profecia de que Métis geraria aquele que o suplantaria como chefe dos olímpicos, a devorou assim como Cronos havia devorado os irmãos de Zeus algum tempo antes.
Métis, por sua vez, antes de ser devorada havia se metamorfoseado várias vezes, na tentativa desesperada de fugir da volúpia estomacal do marido. Isso indica a capacidade da mente de assumir todas as formas possíveis, assim como as águas, que lhe deram origem.
Métis não pôde esconder-se indefinidamente. E, uma vez devorada, nunca mais foi vista; tornou-se um atributo de Zeus, que passou a ser chamado de “sábio conselheiro”, ou, em grego transliterado, metíeta.
Métis podia estar fora do jogo, mas Zeus começou a ter uma dor de cabeça violenta. Para aliviá-la, Hefesto, ferreiro dos deuses, foi convocado; este não achou outro remédio senão, com uma machadinha, rachar ao meio a cuca do pai de criação.
E eis que, perfeitamente armada para a guerra, nasce Atena, a virgem guerreira que presidiria à sabedoria!
E aí nós todos temos o óbvio maravilhosamente descrito pelo mito: a filosofia nasce do amor pela maior das dores de cabeça!
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Pode parecer piada, mas não é! Traduzindo o mito agora: você não pode filosofar sem ter uma imensa dor de cabeça para resolver. Não pode filosofar se leva uma vida muito simples e pacata. Se sua mente não está agitada, ela não vai parir nada de filosófico. Aliás, se não engoliu a própria mente, você nem tem a posse dela, mas ela é algo exterior a você, algo que não é seu.
Assim, Zeus é nosso modelo neste mito. Tão logo ouviu falar que a mente poderia lográ-lo e produzir um ser que lhe usurparia o trono de direito, ele a devorou e a fez sua. E assim nasceu a sabedoria grega, a proverbial sabedoria do povo grego.
Uma sabedoria, aliás, em pé de guerra. Não admira que o pensamento grego seja belicoso em todos os sentidos possíveis. Na poesia, seu poema maior narra uma guerra cruentíssima. Na retórica, enfatizam-se as diversas formas de vencer uma disputa verbal e esmagar verbalmente o adversário. Na dialética, o modo de fazer uma afirmativa e sua negativa se digladiarem até que uma reste de pé.
No fim, a sabedoria, para os gregos, só poderia emergir da disputa, da batalha mental acirrada. Ela só poderia ser Atena. E ela não é, definitivamente, para os tímidos ou para os pacatos.
Não à toa, sua primeira aparição na poesia é ao pé do ouvido do irritadíssimo Aquiles; mas, por uma curiosa inversão, sua primeira ação foi pregar o autocontrole. Entretanto, não é de espantar muito: só se luta uma guerra a fim de se obter alguma forma de paz, de autocontrole. Ninguém luta, por mais que lute, para sempre. Nem sequer o pensamento, que deve, também, na medida do possível, descansar no leito da verdade.
E, para terminar, cabe análise a um último detalhe. Atena é uma deusa virgem que vive só para cumprir os desígnios de seu pai olímpico. A sabedoria é assim, não pensa senão nas coisas do alto, nos princípios de tudo que há. E, neste sentido, a visão grega não é tão diferente da cristã: pois a sabedoria real, o Verbo de Deus, também não vive senão para fazer cumprir a vontade do Pai.