Meditação nos estudos: já ouviste falar disso? Se sim, foi, com quase toda a certeza, conosco, uma vez que poucos falam desse assunto Brasil afora. Mas, mesmo tendo ouvido a palavra, é bem possível que não tenhas uma noção clara do que se trata e é bem provável que não saibas como exercitá-la nos estudos. Se é o caso, não desanimes; falaremos hoje sobre essa história de ter que meditar.
Falaremos, pois, da meditação nos estudos, mas também um pouco sobre sua função na devoção religiosa, porque esses dois campos, os estudos e a devoção, antigamente tinham íntima ligação.
Bem, em primeiro lugar, deve-se dizer que meditar sempre foi uma atividade incentivada no Cristianismo. Em outras palavras, a meditação não era um “plus a mais”, algo que se podia ou não fazer; era uma etapa necessária para se chegar a certos objetivos.
Que os objetivos fossem, em última instância, de caráter espiritual, era algo subentendido; pois, na tradição cristã, não se estuda o mundo senão com um olho posto na dimensão espiritual dele. O contrário disso, o estudo pelo mero acúmulo de saber mundano, era tido por pecado de curiositas, isto é, uma curiosidade cujas raízes estavam agarradas no terreno lúbrico da vaidade.
Neste sentido, entende-se que alguns padres da Igreja condenassem os estudos pagãos como pedestal da ambição de brilhar como sábio ou eloquente para este mundo. Foi somente quando esse ranço foi devidamente extirpado que as Artes Liberais puderam ser resgatadas e batizadas. Assim, por exemplo, quando se diz que São Bento foi capaz de se salvar da escola, o que se afirma não é que ele fugiu das aulas de gramática e aritmética, mas da vaidade da vida escolar.
O que tudo isso tem que ver com a meditação? É que apesar dessa rixa inicial com os estudos seculares, nenhum cristão jamais pôs em questão a necessidade de se fazer algo mais que o mero acúmulo de informações, fosse dos clássicos pagãos como a Ilíada e a Eneida, fosse da Bíblia. Esse algo foi por fim chamado de meditação.
Somente pensar numa etapa a mais no processo de estudos contrasta gritantemente com o modo como se estuda atualmente. Pois não é verdade que, após o aprendizado elementar das letras e dos números, os estudantes passam imediatamente a uma assimilação passiva de conteúdo que redunda no famoso “conteudismo”? Pois nada há que se fazer com o conteúdo assimilado senão regurgitá-lo quando o professor o requisita, seja em forma de repetição oral, seja escrita, numa prova ou num trabalho. E nessa repetição mecânica se esgota o grosso do estudo; a repetição se torna a finalidade.
Eis a razão por que um aluno saído das escolas atuais está quase que condenado, não somente a não compreender as grandes obras da cultura, mas a nem sequer ser capaz de saborear suas passagens mais agradáveis. Essas obras pedem, em síntese, duas coisas, leitura e meditação. E essas coisas dão certo trabalho. Mas quem está disposto a trabalhar para fruir uma obra na era do entretenimento?
Por exemplo, se estás diante de uma pintura, deves lê-la, o que significa observar sua composição e arte; mas também deves imbuir-te da obra, coisa que, na prática, significa tomar posse imaginal dela. Ou seja, deves assimilar ativamente a obra, como quem a presencia desde dentro e até, nela, toma parte. Se obra não se torna parte de ti, pouco ela te valeu. Isso só se faz com o processo que podemos chamar de meditação da obra de arte.
O sentido da palavra meditação pode, porém, esclarecer-se ainda melhor quando relacionada com uma obra literária. Pensemos, por exemplo, na própria Bíblia. Já no Antigo Testamento se falava em meditar; a palavra era, transliterada do hebraico, hagah. Ela significa algo ao mesmo tempo mecânico e interior: a murmuração do que foi lido. E está em diversos versos da Bíblia: “A boca do justo meditará a sabedoria”. “Não se aparte da tua boca o livro desta Lei, antes medita nele dia e noite”. Mas, como todo aquele que chega a meditar entende, há bocas exteriores e ouvidos espirituais. A boca do corpo murmura mecanicamente o que lê ou memoriza: mas ele faz isso para que, no interior, o intelecto abra os ouvidos e compreenda, criando verdadeira sinergia entre o corpo e a alma.
Este é um sentido da palavra meditar. Um sentido, como se viu, não só mental, mas que envolve o corpo e, na verdade, começa nele. Alguns versos da Bíblia podem render um dia todo desse murmúrio que desperta a inteligência espiritual. Se queres experimentar, tenta fazer isso com o Gênesis. Escolhe alguns versos e murmura-os para ti mesmo, baixinho, mentalizando e imaginando, e vê se não começam a surgir pensamentos e até experiências de uma natureza diferente da suscitada pela mera leitura com os olhos.
Bem, esse assunto se poderia estender mais, na direção da oração, mas esse é um assunto para os diretores espirituais. Queremos aqui nos usar desta prática para os estudos chamados seculares também.
A primeira coisa que notamos é que a repetição de algo que foi lido com concentração desperta a inteligência de seu sono e a faz fixar-se sobre certo objeto. A definição clássica de Hugo de São Vítor para a meditação é: frequens cogitatio cum consilio: o pensamento assíduo (num objeto) a partir de algo que foi sugerido por uma leitura, ou mesmo por outra meditação. Bem, de cara aprendemos que a meditação é um pensamento assíduo, contínuo, ininterrupto; ou seja, não é um pensamento passageiro que nos ocorre e já esquecemos, como tantos nos ocorrem num só dia. E esse pensar assíduo tem uma direção e foco, pois esse é outro significado do termo latino consilium. O vitorino dizia que inquirimos sobre a origem, a causa, o modo e utilidade daquilo em que pensamos. Em outras palavras, não é um pensamento desnorteado, mas que busca coisas bem claras.
Tentemos, então, meditar sobre uma obra simples da literatura; como a fábula do sapo e do escorpião. E usaremos as categorias de Hugo de São Vítor.
Bem, a primeira providência é ler a fábula com a boca, os olhos e a mente, participando, o mais possível, da história. Faz isso antes de continuar, é bem curtinha.
Se perguntarmos, interiormente, a origem dessa fábula, que diremos? Podemos dizer que provém da pena de algum fabulista. Alguns dizem que foi Esopo, outros dizem que não, que sua origem é outra. Contentemo-nos com saber que algum fabulista muito antigo a escreveu. É simples? É simples. Mas por que teria de ser algo muito rebuscado? Quem quiser empreender uma investigação sobre as origens profundas dessa versão poderá enveredar por um caminho longo e talvez obter uma resposta satisfatória. Mas aqui já vemos que existem respostas e respostas. As mais precisas às vezes custam muito suor. E são para quem as deseja.
E quanto a sua causa? Bem, algumas respostas se impõem. Uma delas é a narrativa, pois o autor se usa desse gênero para escrever. Ele conta uma história, se valendo de personagens, cenários e interações. Esses elementos, urdidos pela técnica da escrita, formam a fábula. Podemos, até, pensar na tinta usada para escrever como uma das causas da fábula.
Em relação ao modo, há muito que dizer. Aí o bom leitor tem amplo espaço para se exercitar. Pode analisar os personagens, vendo no sapo uma prudência inicial a ser louvada, não fosse depois enganado pelas palavras do escorpião. Neste, vê a astúcia capaz de convencer com argumentos, aliada à malícia invencível que acaba ferindo ao próximo e a si próprio. Vê, nisso tudo, grande engenho da parte do autor, por ter criado, com tão poucos elementos, uma trama complexa e verossímil. E muito mais seria possível extrair.
Em relação à utilidade, podem-se apontar as diversas lições imbricadas na história. De cara, a moral mais óbvia de que não se deve confiar em quem é malicioso por hábito ou natureza, sob pena de se sofrer por culpa própria. Mas também é útil para aprender a escrever.
Viste, então, como com leitura aplicada, e um modo de pensar assíduo e orientado, com alguns minutos se é capaz de tirar muita coisa de um pequeno texto?
Agora vês também que sem as categorias certas e sem o modo apropriado de leitura, não se tira dos textos senão o óbvio, quando se tira.
A meditação não é nada além de um pensar contínuo, laborioso e guiado. Ela conexiona outros pensamentos que antes podiam estar dispersos, ligam leituras que fizemos em ocasiões bem diferentes e, por fim, nos possibilita criar um mundo mental onde passeamos livremente sempre que quisermos; um mundo onde nossos pensamentos têm sentido, não vagueiam a esmo; uma alma, enfim, mais ordenada e pronta para pensar, refletir, deliberar, agir com proveito. A razão por que lemos muito e temos uma alma dispersa é essa: não meditamos, por consequência não tornamos nossos os pensamentos alheios e não lhes damos uma forma nossa conforme as nossas intenções e não os desenvolvemos até suas conclusões lógicas. Só isso é formação de pleno direito; coisa que o mero acúmulo de técnicas, imagens e noções não será jamais. Por isso a ausência de um ambiente meditativo jamais poderá redundar numa formação da alma como a tinham os antigos.