Uma tradição veneranda e de muita antiguidade no Brasil põe sobre os ombros da educação a função de solucionar todos os nossos males. Se há uma área sociológica em que vivemos fuçando, na desesperada busca pelo alinhamento perfeito das peças que, num belíssimo dia de sol, nos permitirá viver para sempre tomando limonada e contemplando a vida da natureza, essa área é a das políticas de educação. A esperança não é tanto que o estudo prévio das melhores práticas nos fornecerá a fórmula perfeita; não, nosso modus operandi é pura e simplesmente mexer de cinco em cinco anos na fórmula – a esmo – com a vaga ideia fixa de que uma hora, eventualmente, a coisa torne-se numa panaceia.
Essa não é uma tradição de esquerda ou de direita. Atualmente, são os conservadores e liberais que têm posto grandes expectativas na educação (já, já veremos em que tipo de educação). Mas em tempos nem tão priscos, a panaceia educacional era brandida como emplastro Brás Cubas por figuras tão sinistras quanto Paulo Freire, Brizola e, mais recentemente, Dilma Roussef.
Ocorre que se essa tradição é tão antiga quanto abrangente; então, das duas, uma: ou a educação não é a resposta a todos os nossos problemas, ou nossas tentativas estão levando-nos cada vez mais para longe do alvo, como um foguete cuja meta era a lua, mas que mergulhou nas profundezas do oceano.
Podemos ignorar a primeira opção porque, se a educação não responde a todos os nossos anseios, ao menos a alguns deles ela tem de responder, e não os de somenos importância, uma vez que todos concordam que muito da prosperidade de uma sociedade depende dela. Ignorando, ademais, as ideias da gente de esquerda, com cuja meta– alterar a natureza humana para criar o futuro hipoteticamente perfeito – não podemos compactuar de modo algum; sobra-nos analisar as ideias sobre educação que andam circulando entre os direitistas, para vermos se ascendem ou afundam.
A premissa fundamental é que querem uma educação de qualidade, uma boa educação. São, é claro, palavras tão vagas quanto possível. Desprovidas de carne, de sustância, são como um esqueleto nu, que precisa de cordinhas para ficar em pé. É necessário, pois, ouvir um pouco mais, emprestar ouvidos atentos, para que se escute o que está por trás dos ideais professadamente belos. E o que se oculta são certas incongruências e contradições que gritam.
Assim, não podemos senão dizer que, para considerável parcela de pessoas da direita – boas pessoas, as quais nutrem bons sentimentos – a educação que querem não é, bem francamente, a boa educação, nem a da mais fina qualidade que se pode conceber. Elas querem alguma educação, sim, apenas não a melhor, e nem talvez a segunda mais excelente. Senão, vejamos.
Educação é tradição, é aquilo que nos foi trazido pelas passadas gerações. Podemos de cara imaginar que essas gerações apenas procuraram legar aquilo de bom que tinham a dar. Seria mesmo impossível que fosse diferente, pois a pura malícia não nos teria conduzido para onde estamos em matéria de civilização. Logo, se educação é tradição, e se nos foi legado o que de melhor foi feito, então toda e qualquer quebra brusca e completa com a cadeia da tradição pedirá uma causa muito forte e eloquente que a justifique. Houve tal quebra. Vejamos se havia alguma justificativa.
A educação ocidental foi violentamente fraturada no Século XIX pela revolução industrial e pelas mutações sociais que esta causou. Há, sem dúvida, um antes e um depois na educação, tendo como ponto de ruptura o aprimoramento da técnica industrial. Do ponto de vista sociológico, houve mudanças em todas as áreas da vida; mas a educação foi das que mais sofreu, e de certa forma silenciosamente, sem poder protestar.
A mudança básica foi de perspectiva. Se, num momento, a educação era coisa de gente do clero e das altas camadas sociais, de uma hora para outra tornou-se necessário que ela fosse estendida a todos, sob o pretexto de que as novas formas de trabalho o demandavam. Não era, pois, uma demanda orgânica nem uma demanda pela educação que educa porque isso é bom: era uma demanda por uma educação instrumentalizada aos fins da indústria e do comércio, cuja ascensão foi vertiginosa e poderosíssima. Assim, quase da noite para o dia, a educação começou a mudar, pois as metas sociais haviam mudado. Tal ascensão, tal mudança de perspectiva gerou, também, e até mais importantemente, uma mudança de expectativas quanto à vida mundana: viu-se que a vida aqui podia ser boa e até maravilhosa, e se passou a querer muito que ela assim fosse.
Essa perspectiva é a menina dos olhos da direita brasileira de modo geral. Ocorre aqui, infelizmente, um imenso equívoco. Ao mesmo tempo que essa direita tem grandes expectativas em relação à vida mundana, ela por outro lado precisa lançar mão de certos argumentos mais tradicionais para se contrapor a outra força portentosa de nossos tempos: a esquerda revolucionária, cuja meta é dissolver todos os valores até que reste somente o caos. Diante disso, para combater a figura monstruosa que essa esquerda mostra todos os dias, a direita faz uso de tudo em que consegue pôr as mãos. Uma dessas coisas é aquela educação clássica de que se tem falado com alguma frequência por aí. Vista de fora, sua aparência é quase angelical; ela parece mesmo ser imune a venenos ideológicos. Parece uma arma pura a ser brandida, como a que um São Jorge empunharia para debelar o dragão da lenda.
Essa educação clássica, porém, é a mesma que foi sendo paulatinamente abandonada conforme a visão moderna e capitalista ia se tornando a norma; é a mesma que foi aquilatada de anacrônica pela nova cosmovisão. E eis aí uma contradição que vem sendo desprezada por ser ignorada. Para pormos em termos bem claros: a direita moderna, filha ou pelo menos devedora da nova visão de mundo, diz querer educação de qualidade (para se contrapor à corrupção esquerdista), mas está confusa quanto ao que isso significa. Por um lado, sua cosmovisão dita que o sucesso se mede pela qualidade de vida, a qual, em última análise, se mede pelo dinheiro; por outro, diz querer boa educação, educação de qualidade, e, até, por vezes, nuns arroubos que tem, diz querer educação clássica.
Ora, os pais direitistas que querem seus filhos bem sucedidos, bem asseados, com boas casas, boas escolas, boas viagens por fazer, bons jantares por comer precisam saber de um detalhezinho assaz crucial: a educação clássica não foi elaborada para garantir tais coisas. Seus fins são muito outros. Mas espere um pouco, amigo leitor, pois há mais. Ela com razão se chamava artes liberais. É porque tais artes realmente tornam o homem livre para escolher seu caminho na vida, e nos tempos atuais o tornam livre para escolher não seguir uma carreira segura rumo ao sucesso mundano.
Imaginemos a situação. O pai direitista quer dar ao filho educação de qualidade e ouve falar da tal educação clássica. Após um ou dois anos dela, o filho começa a falar algumas traquinagens estranhas sobre ter vida intelectual e se dedicar à leitura dos clássicos. O pai, com alguma aflição, descobre que, se levada a cabo, tal tarefa tomaria uma vida. E se pergunta um tanto confuso: mas quando terá tempo de estudar para o concurso? Mais um pouco do filho enfiado nos livros e o pai começa a farejar até comunismo, ou algum tipo de fanatismo esotérico. E então se desesperará, amaldiçoando o dia em que deu ouvidos ao idealista que o engrupiu mais do que malfadado Paulo Freire!
A educação clássica é a educação para quem quer se educar. Quem almeja encaminhar o filho para uma vida de ganhos meramente econômicos, talvez faça mais bem em não o aproximar dela. A educação que em geral esse pai busca é técnica, profissionalizante, pois nunca meditou no fim por que seu filho estuda. Isso quer dizer que a educação clássica veda ou inibe o ganho de dinheiro? Certamente que não. Pode-se argumentar que ela é o melhor caminho para uma vida mundana bem sucedida (argumento que ficará para melhor oportunidade). Ocorre que ela não encaminhará necessariamente para isso; é nesse sentido que pode ser perigosa. Assim, se por um lado nem todos estão aptos a seguir tal educação, por outro, para pais que não queiram ver seus filhos aos 30 ainda buscando uma colocação mais vantajosa no Mercado, ela também é proibitiva. Se, porém, vedando aos filhos que podem trilhá-lo, o caminho para os valores mais altos, depois os pais descobrirem que seus pimpolhos foram surrupiados para a causa da corrupção de todos os valores, aí não haverá muito que se possa fazer. E não só os pais, mas todos sofreremos. Eis o dilema. E ninguém disse que seria fácil resolvê-lo.